sábado, 21 de novembro de 2020

Caminho de Vidro

 

A praia estava diante dos meus olhos. A minha praia, onde costumo caminhar aos sábados. Dessa vez, tinha chovido muito no dia anterior e observei que na areia havia muitos cacos de vidro.

Quando me dei conta disso já não podia ignorar a situação e passei a procurar um recipiente para colocá-los. Nisso, eu vi uma sacola plástica de supermercado e pensei: 

- Ok, vai servir. Mas, puxa vida... bem que isso podia não estar aqui. 

Ao ter esse pensamento, não sei bem o que aconteceu, mas passei a reparar em tudo que não devia estar ali. 

Havia, além de vidro e sacola plástica, bitucas de cigarros, latas, garrafas, seringas e muitos outros objetos perdidos naquele lugar.

Era muita coisa para uma pessoa sozinha sair catando e decidi priorizar a coleta dos vidros. 

Azuis, verdes, transparentes, eles brilharam na areia e eu ia sendo atraída até eles. 

Não sei quanto tempo caminhei de cabeça baixa, concentrada, alheia a tudo e todos ao redor. 

Enquanto abaixava para pegar os cacos na areia, ouvi quando um pescador falou comigo.

- Moça, essa praia não tem jeito. A gente limpa a areia, mas continua a chegar todo tipo de lixo pelo rio.

- Pensei que viesse do mar.

- Não. Vem lá de cima, do morro.

Perguntei o que ele trazia na canoa, respondeu que era camarão.

- Na volta da caminhada, passa aqui que vou separar um pouco para você.

- Estou sem dinheiro.

Ele riu. E disse que vendia para a peixaria, que para mim seria um presente.

Nos despedimos desejando boa sorte um ao outro, segui feliz com a expectativa de nos reencontramos.

Continuei o meu caminho e a sacola de plástico foi ficando pesada de tanto vidro.


As pessoas cruzavam comigo, riam, mas ninguém me perguntou mais nada. No silêncio interrompido pelas ondas, eu me lembrei de uma conversa recente que tive com a minha filha.

Ela perguntava se eu me lembrava de algum fato passado durante a Ditadura. 

Sou de 1974, quando a Ditadura terminou, em 1985, em estava com 11 anos. 

Apesar de ser ainda uma criança, contei que me lembrava da eleição indireta para escolha do presidente  que elegeu Tancredo Neves.

E de assistir ao Festival de Música na televisão, a voz única de Tetê Espindola. “Você pra mim foi o sol de uma noite sem fim...”

Não sei quem ganhou o festival,  mas nunca esqueci desse momento.

Eu lembrei  a minha filha que, no futuro, ela será questionada pelos filhos sobre coisas que estão acontecendo hoje, como a pandemia do Covid- 19, a queda do PT e a ascensão da extrema direita.

E, para o meu espanto, ela respondeu:

- Eu acho que vou ter vergonha de dizer que não participei mais ativamente desse processo, apenas me dediquei aos estudos.

Ouvi isso e senti sua tristeza e desesperança com o sistema econômico e político do país. 

Mas, tentei explicar que cada um de nós tem seu papel no mundo.

Aqueles que protestam precisam de alguém que os ouça, que os representem em posições de "poder fazer" para que a transformação comece.  

"Cada um tem o seu papel". 

- Mãe, comparo a nossa sociedade com uma casa com a estrutura muito danificada. Para melhorar é preciso desconstruir e recomeçar.

Confesso, que a palavra desconstrução me dá medo. Ao contrário dela, acho que nem tudo está perdido.

Há muitos cacos de vidro para serem recolhidos, há os que continuam ignorando isso, aqueles que ajudam a catá-los e até os que compartilham camarão.

É o caminho.

O importante é fazer algo para que as pessoas não continuem se machucando.

 


2 comentários:

  1. Muito interessante a sua narrativa, vou colar lá no meu facebook.

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    1. Oi Beto, fico feliz que tenha gostado da crônica e também por sua visita no blog. Volte sempre! Daniela

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