quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Urubu- bu bu

 

Elegante, com seu smoking, reluz na areia da praia a família Urubu. 

Alguns concentrados a olhar o mar, planam de vez em quando criando um ponto negro num céu de absoluto azul.

Ao observá-los, vejo o mundo em paz. Não quero pensar em nada, estou buscando o sentir.

Sentir o cheiro da minha pele queimada pelo sol, o vento no meu rosto, a sensação da areia morna sob os meus pés, o cheiro do mar.

Não há tabus, preconceitos ou medo. Não questiono a companhia dos urubus e eles completam o meu paraíso.  

O jeito como me ignoram dão a eles o poder sobre esse lugar, ao chegar mais perto, eu decido aumentar a distância que nos separa.

Não me permito invadir o espaço deles. Estou de passagem.  

Eu estou bem. Eles estão bem.

Fico imaginando aquela praia como um pequeno cosmo e sinto que cheguei a um entendimento sobre a felicidade.

O mundo tem urubus, aceite- os.   



Estou feliz por ter aprendido alguma coisa em um espaço tão inusitado, caminho com passos mais seguros e cantarolo uma canção de amor.

É uma sensação de força saber que posso conviver com os urubus sem medo, angústia ou nojo.  

No estado de felicidade, todas as diferenças e maldições estavam sendo toleradas. Faltava disposição para julgar.

Nesta hora, eu vi você, tartaruga.

Estava tão imensa, grandíssima e imaginei quantas lutas você teria travado, os motivos para terminar seus dias na areia dessa praia.

Você está com a cabeça para fora, as patas esticadas, sua pele ressecada, sendo comida aos pouquinhos pelos urubus.

Não te dão trégua.

Eles te devoram enquanto os companheiros continuam a observar o mar. Agora eu entendo: estão à espera de outras de sua espécie.

Eu os vi olhando o mar e tinha achado a cena tão poética, agora tinha vontade de chorar.


Porque para sobreviver precisamos nos devorar?

O cheiro de carniça invadiu o meu paraíso e a vontade foi de reagir.

- Não façam isso, urubus! Deixem- a em paz! Vocês não param nunca!

Caminhei decidida até a cena da degustação da morte, o cheiro de carne podre era terrível, mas eu estava disposta a continuar por você.

Os urubus foram se afastando, indecisos, pulando curtinho pra cá e pra lá até que, finalmente, consegui me aproximar e ver o estrago que fizeram no seu corpo.

Você estava despedaçada e, mesmo com todo esforço, eu não seria capaz de juntar sua pele e devolver ao mar. Me perdoa?

Eu me senti tão fraca ao ir embora e deixar você ali. De certa forma, eu sei que falhei com você.

Voltei no dia seguinte, na esperança de te reencontrar. Você não estava lá.

Os urubus ainda esperavam outra da sua espécie chegar do mar.

Espero que sua experiência final sirva para que elas não se enganem achando que aqui é o paraíso das tartarugas.

Não, não é.

Esse é o paraíso para pessoas como eu, que conseguem correr da vida.

Procuro sua casca dura, ela deveria estar ali. Não acho.

Alguém chegou antes e levou embora, imagino sua casca exposta na parede de um uburu.

Você se transformou em um produto.

 

 

 

 

 

 

 

 

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