sexta-feira, 29 de julho de 2022

Entrevista no ateliê da pintora Bernadete Silva: A rigidez do “sou” é um equívoco

 

Ateliê da pintora -  Foto: Nani Basso

Até o dia 21 de agosto, quem estiver em São Sebastião poderá visitar na Casa da Cultura a Exposição Cores Quentes, resultado de 13 anos de trabalho da artista plástica Bernadete Silva. 
O talento de Bernadete Silva para as artes surgiu na infância, da qual ainda guarda memórias afetivas sobre o tempo em que tocava saxofone com o pai, desenhava e pintava a paisagem. Porém a dedicação à arte teve que esperar a aposentadoria. 

Pintora Bernadete Silva - Foto: Nani Basso

Com a curadoria de Isabel Galvanese, a Exposição Cores Quentes leva o público a um passeio pelo universo do ateliê da artista, onde fui encontrá-la. Parte da nossa conversa ficou gravada e você poderá ouvir durante a visita a exposição, neste espaço eu a publico na íntegra.

Da esquerda para direita: Isabel Galvanese, Bernadete Silva e eu.

 D - A escrita e a pintura impõem ao artista o desafio de superar o medo diante da tela em branco. Será que a pintura é também uma forma de Escrita?

B – A pintura tem poesia, tem história, tem música, mas quem conta é quem vê. Um quadro não pode depender de explicação. Dez pessoas leem um texto, dez entendimentos para aquele momento de cada um. Um quadro visto hoje e revisto daqui a alguns anos pela mesma pessoa, será outra coisa. Há o movimento natural da vida, a liberdade para avançar, recuar, parar. Sempre posso raspar tudo e recomeçar sobre das marcas do que foi feito. Também posso adiar, guardar para retomar depois, ou jogar fora, mas sempre olhando mais que fazendo. Não sei se seria medo. Às vezes chego devagar, tateando. Noutras vezes, ataco a tela no impulso, nem sempre certeiro. O erro também é oportunidade. Tenho que errar muito para, de repente criar alguma coisa, pouca. 

   


D - Ao olhar os seus quadros, percebo as linhas vigorosas, enérgicas, sinto a tinta molhada querendo mais. Como se você não pintasse apenas com as mãos, mas com tudo que carrega - corpo e alma. Com essa intensidade, é difícil saber a hora de parar?

B – Parar é sempre difícil. O quadro morre e renasce várias vezes. Posso até perder o trabalho, mas ganho. É sempre um aprender. Sigo contemplando e valorizando mais as coisas que vejo, deixando o sentimento interferir no olhar, então a cor vem de dentro, da sensação.

D - O branco da tela vai sendo preenchido pelas cores, mas ao mesmo tempo é ele que traz a luz, a leveza, o respiro. Como equilibrar o tudo e o nada, quando é preciso colorir e quando respeitar o vazio?

B – Tenho dificuldade para aceitar a teoria a priori. Não que a evite, mas para mim não basta. Seaprendo alguma coisa é com o fazer. Paul Klee disse que é preciso deixar a obra seguir em seu ritmo e se um dia ela desabrochar, melhor ainda. Concordo com ele. Procuro me afastar das artimanhas, luto para permanecer na instabilidade e não ser seduzida pelo que aprendi. Não busco o equilíbrio, busco o que não sei e isto é instável. E se caio na tentação, destruo, não sem dor. Mas aprendi que o que vem, tem que vir naturalmente. Se ficar presa ao saber, serei como um bicho confinado. Sou livre e não sou de jogar boca de forno. Neste processo a cor vem e vai. Quer clarear, pode escurecer tudo! Um dia Carelli disse “está faltando luz, coloca preto!”. Não há um caminho sólido, monótono. Um ponto pode alterar tudo. Fundo e figura podem se fundir na abstração, ou não.

D - Escrever o primeiro parágrafo do livro é sempre um desafio, ele precisa dizer o bastante para prender o leitor, mas não pode entregar tudo. Na pintura, qual é o momento crucial, aquele que faz o pintor pensar: agora não posso tremer?

B – Se parar de tremer paro de pintar. Paro até de viver. A razão e o saber são ligeiros, chegam antes querendo colocar tudo no seu devido lugar. O primeiro parágrafo da pintura não é eterno e não me prende. Luto e me concentro, sigo construindo um saber que não sei qual é. Quando a pintura é inteligente e não tem sentimento, pode até ser bonita, mas não carrega a profundidade que poderia. Pode até ser falsa. Tem seu valor, mas é outro valor, não o que busco.

D - A exposição que você vai apresentar é resultado de 13 anos de trabalho. Ao analisar essa linha do tempo, consegue observar alguma mudança entre as pinturas mais antigas das atuais? O que mudou e por quê?

B – Tenho aqui trabalhos de 2009 e de hoje. Se não tivessem data e minha memória, eu não saberia, no entanto tudo muda o tempo todo. O que eu era agorinha mesmo, não sou mais. A rigidez do “sou” é um equívoco. Valorizo as oportunidades de avançar. Mesmo que doam, ampliam o alcance do olhar. Assim a pintura. É um exercício de aprender o tempo todo e ao mesmo tempo se desprender do que aprendeu.

D - Você me emprestou o livro "Cartas a um jovem poeta", de Rilke, que aborda sobre criação artística e autoconhecimento. Saber- se ou viver em busca de si mesma?  O que faz mais sentido para você quanto artista?

B – A mudança é o próprio viver e o que vivo me faz ser o que sou em tudo que faço, inclusive na pintura. O saber está presente, mas não pode prender. Quando sei, já foi. Os fracassos e limites são penosos e representam oportunidades de aprendizado. A imperfeição contribui. Aceito esta condição.










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