A simplicidade pinta um mundo mais bonito. Cantinho do galpão onde acontecem as aulas de pintura. |
O artista recortou pedacinhos
de papel e tentava criar novas imagens, como num jogo de quebra-
cabeças.
Após muito tempo neste
processo, que exigia dele grande concentração, uma rajada de vento entrou pela
janela do ateliê e levou os pedacinhos de papel pelos ares.
Quando os papéis
caíram no chão, o artista imóvel observou- os e descobriu que o acaso tinha
criado a imagem perfeita.
- É preciso estar com a mente aberta para perceber que alguns “acasos” são como presentes em nossas vidas, do contrário podemos ignorá-los e maldize-los. Eu digo.
- Não apenas para percebê-los, mas também para provoca-los.
Quem me contou essa história, me desafiando a pensar além do óbvio e com ousadia foi um senhor de 91 anos, de olhos vivazes, o pintor Antônio Carelli.
Local da nossa conversa e onde acontecerão as aulas de pintura |
Hoje, eu fui conhecer o ateliê dele, na cidade de
Caraguatatuba, um lugar em meio à mata atlântica, repleto de referências de
pintores e obras de arte. Quem me levou até lá foram as minhas amigas pintoras, Bel Galvanese e Bernadete de Lourdes Silva.
Releitura de Michelangelo |
Releitura de Modigliani |
Apesar de eu ter ressaltado que o meu talento para pintura
nunca (jamais!) se manifestou e que eu desconfio que tenha nascido sem ele, as
duas ainda acreditam que eu vou me surpreender.
Entramos no ateliê, um grande galpão, sentamos em roda,
comemos bolo de laranja e tomamos café quentinho.
Quando ele ficou sabendo que eu gosto de escrever, me disse que
a pintura vai me ajudar a olhar com mais atenção às coisas a minha volta e que isso
se refletirá nos meus textos. Esse comentário me deixou animada.
Tucanos, de Antônio Carelli |
Releitura de Anjos, de Antonio Cordeiro. Escultura imensa, fica na entrada do galpão de pintura. para queimá-la foi preciso construir um forno especial |
A Bernadete leu um trecho do livro “O Arco e a Lira”, de
Octávio Paz, que fala sobre a importância da técnica na criação de um poema.
“A técnica é procedimento e vale na medida da sua
eficácia... Cada poema é um objeto único, criado por uma técnica que morre no
instante mesmo da criação...”.
- Essa é uma aula de pintura ou de literatura? Ele brincou.
O pintor Antônio Carelli caminhando ao lado da querida Bernadete. |
Hoje não teve aula de pintura, mas sinto que aprendi muito
em pouco tempo e estou pronta para deixar o acaso agir, quem sabe para onde ele
vai me levar...
Para me despedir deste dia incrível, eu deixo você com um trecho de Poema Sujo, de Ferreira Gullar:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma?
claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica
e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva igual a tua bocetinha
que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor
e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo
(não como a tua boca de palavras) como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
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