sábado, 27 de abril de 2019

Amores



Sabe aquela história da mulher que é traída pelo marido, mas finge que não vê?
Ela tem emprego estável, filhos criados, a companhia de amigos, o amor da família, concluindo, uma vida que para nós, expectadores, seria perfeita se não fosse um detalhe: o “maledito” marido. 
É tão na cara que ele a trai e nem tenta disfarçar que chegamos à pensar em procurá-la e abrir o jogo.



- Vi seu marido sozinho com uma negra bonita, esbelta, em um passeio por uma trilha de Ilhabela rumo à uma praia paradisíaca.


No entanto, pra que despertar aquela que deseja continuar na escuridão da ignorância?
Eita, perguntinha esfarrapada essa, mas funciona para aplacar a nossa consciência. Funciona bem, ou não?
É reconfortante culpar a mulher traída que não quer ver.
É duplamente reconfortante, eu diria, porque ela – além de não querer enxergar o óbvio -  coloca todos ao seu redor como vítimas de uma situação insustentável.
Se deduramos o caso somos apontados, no futuro, como culpados por destruir um casamento de duas décadas e se nos calamos somos acusados de acobertar o traidor.
Situação horrível a dessa mulher, pior ainda a nossa. Mas, será que é só isso? Piedade e mais piedade?
Convenhamos, tirando um pouco o véu da bondada, se é que ele nos cabe, por trás desta piedade toda também tem uma crítica.
E o que nós não queremos perguntar porque seria de muito mal gosto e, afinal, não somos esse tipo de gente,  é:

- O que ela ainda faz com esse traste?

Pois bem, chegamos ao ponto de onde não podemos retroceder. Ou melhor, eu não quero retroceder.
Mania essa de falar no plural quando o assunto é indigesto. Sem mais preâmbulos e lenga- lega, confesso: Eu sou a traída que não quer ver.    
No princípio, era difícil falar sobre isso e hoje nem dói mais.
Por isso, te livro da obrigação de se sentir mal por mim e vou contar o que eu sei dessa história.  
Éramos todos amigos. Saíamos juntos e fazíamos passeios bastante divertidos. Não sei bem quando tudo mudou, quando aquela magrela e o meu marido decidiram iniciar uma aventura e me deixaram para trás.
Tá, desembucha logo. Eu posso ver as perguntas se formando em seu cérebro, decendo por sua garganta. Abra a boca e pergunte:

- Por quê? Por que eu deixei isso acontecer? Por que eu deixei ele sozinho com essa aventureira, não me impus ou fiz um auê?

Pois é, eu pensei que fosse um caso de amor passageiro. Talvez, ele merecesse isso depois de 20 anos de casamento e mais seis de namoro.
Não, não é só isso.
Estou aqui pedindo sinceridade, então, eu vou confessar que a princípio esse romance de final de semana me pareceu bastante conveniente.
Eu apreciei poder acordar aos sábados e encontrar a casa em completo silêncio, tomar o meu café com calma, deitar no sofá e assistir um documentário sobre a Clarice ou a Hilda, ler um livro de poesia e ouvir uma música francesa sem ninguém pedindo para baixar o som.  
O meu marido sempre que está em casa, à toa, fica procurando por alguma coisa para consertar, geralmente coisa que faz barulho.
E o que dizer quando ele começa a fazer ligações intermináveis para operadoras de telefone ou canais de TV a cabo e coloca no viva voz?
Senhor... como eu odeio quando ele faz isso.
 Odeio tanto que consenti em abrir mão dele nos finais de semana, em dividi- lo com essa magrela.
Mas, pensei que aos poucos ele fosse cair em si, o que não aconteceu. Pior, com o tempo, ele arrumou outra magrela. Agora são duas.
E você precisa ver os cuidados que ele tem com elas. Para exemplificar, basta dizer que elas agora dormem no meu escritório.
Enquanto escrevo, elas me olham. Ainda bem que não sabem ler.
Mas, era só o que faltava. Novinhas, esbeltas, com uma linda pele negra, sem nenhuma ruga ou marquinha e ainda saberem ler. Ora, isso eu não suportaria. 
Não me julgue, por favor. Só eu sei o que eu passo aqui em casa. Já pedi para ele abandoná-las, mas isso o deixou enfurecido.
Veio com uma conversa sobre respeito, invasão de privacidade, busca da felicidade, vida saudável e foi só piorando.
E você não vai acreditar, mas ele ainda teve a coragem de me convidar para fazer parte disso? Lógico, eu disse não.
Não está em mim viver esse tipo de aventura, quando nos casamos eu deixei isso muito claro.
Aí sabe o que aconteceu?
Ele jogou na minha cara que eu não podia cobrar fidelidade enquanto vivia com os pensamentos divididos entre um lugar na França e um lugarejo de pescador e, pior, iniciando um  romance complicado e obscuro.
Fui pega de surpresa no meu ponto fraco, fiquei de queixo caído porque não imaginava que ele tivesse conhecimento desse meu mundo particular e tive que me calar. Hoje vivemos um impasse.
Enquanto não encontramos um jeito de aproximar nossos mundos tão opostos, fingimos. 
Eu finjo que não me incomodo com o tempo que ele passa sozinho com as suas duas bicicletas e ele finge que não quer saber como está indo a história do meu livro de romance.
Estamos bem assim, pode acreditar, sem nenhuma cobrança e sem perguntas que nenhum dos dois saberiam como responder agora.
Talvez, nosso casamento não dure para sempre ou podemos nos acostumar a nos dividir com outras paixões e fiquemos juntos e felizes para sempre, quem pode saber?
Mas, uma coisa é certa. Nunca acredite em uma história sem ouvir o outro lado, não existe santo sem pecado e ninguém é tão bom que não pode ser mau.
Quem julga, sempre perde alguma coisa. 


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