Aquele tinha sido um dia quente, o céu ainda ardia com uma cor entre o rosa e o alaranjado, enquanto sol estava prestes à adormecer na linha do horizonte.
Ela estava de pé, em frente à grande janela de vidro, que
ia do teto até o chão, quando se virou para dentro da sala, onde estavam centenas
de fileiras de papéis amarelados, que exalavam o perfume do passado longínquo.
Tudo lá parecia impregnado de eternidade.
Ela respirou bem fundo, como se isso bastasse para
transportá-la para dentro dela mesma, por onde sabia que a viagem teria que
começar.
Guiada apenas por uma vontade sem razão, sentou- se num
canto da sala, quase encostada a parede e começou a mexer na pilha de papel à
sua frente.
Ela pegou nas mãos uma conta de luz, de 1992, ano em que
entrou na Faculdade.
Lembrou- se do apartamento pequeno, que ficava no 3º
andar do edifício “Mansão Butantã”, no
final da Avenida Corifeu de Azevedo Marques.
De repente se viu subindo os seis lances de escadas, fazendo
gestos despropositados com as mãos para que a luz não se apagasse de repente,
entre um andar e outro.
Se ela pudesse se ver agora sentada naquele canto da sala,
ficaria espantada com o seu rosto contraído de nojo por causa do aspecto gasto da
forração do piso do antigo apartamento.
Até o cheiro de sabão em pó que ficava impregnado nos
plásticos que revestiam as paredes e os pisos do banheiro e da cozinha,
pareciam ter sido transportados para aquela sala.
Colocou a conta de luz ao seu lado, onde se somariam tantas outras.
Esticou a mão direita para pegar um envelope, abriu e dentro
havia uma fotografia.
Eram oito jovens sorridentes sentados à mesa de um bar e
ela estava entre eles.
Tentou de todas as formas resgatar qualquer migalha de
lembrança daquele dia e nada.
Porque ela ria tanto, do que será eles estavam falando,
quem eram as pessoas ao seu lado?
Quem tinha sido ela naquele bar?
Mexeu a cabeça de um lado para o outro, como se assim
pudesse afastar aqueles pensamentos. Ela precisava continuar.
Então, colocou o envelope com a fotografia ao seu lado,
onde se somariam outros tantos.
Levantou um pouco para esticar as pernas e andou até encontrar
uma espécie de lençol, que em algum momento tinha sido branco, mas agora estava
cheio de manchas de bolor.
Levantou o pano com as duas mãos até a altura dos seus
olhos e, entre espantada e confusa, viu que tinha dois buracos nele, como se
fossem dois olhos.
Ela, de repente se lembrou. Aquele pano velho um dia
tinha sido uma fantasia de fantasma usada por seu filho, em algum lugar do
passado.
- Ah! Meu Deus, é
hoje a festa de halloween da escola? Eu esqueci e agora?
- Não se preocupa,
Dani. Eu vou improvisar uma fantasia de fantasma, nós daremos um jeito.
Era quase como se estivesse ouvindo a voz daquela que,
por tantas vezes, tinha salvado a sua pele. Era a Romilda.
Quanto tempo fazia que os caminhos das duas tinham
deixado de se encontrar?
Com lágrimas nos olhos, colocou o pano precioso de
memórias no mesmo lugar onde tinha retirado há apenas alguns minutos.
Em seguida, sentou- se na cadeira em frente à uma
escrivaninha, o dois únicos móveis da sala.
À sua frente, ela viu uma pilha de listas telefônicas
muito antigas e, entre elas, a ponta de um papel. Decidiu puxar devagar para
não rasgá-lo.
Era uma lista de compras de supermercado:
- Dona Dane tá
faltando Omo, amaciante, água sanitária, veja, frutas, legumes, miojo, molho de
tomate, milho de pipoca, café de máquina...
Não leu até o fim. Bastava ter lido apenas Dona Dane e já
seria suficiente para lembrar do tempo em que ia toda semana ao supermercado e
voltava com o carrinho cheio.
A prova de que aquela casa já tinha sido mais cheia de
gente do que de papéis velhos estava bem à sua frente.
Voltou a guardar o papel no mesmo lugar.
Ela caminhou até a porta e já estava prestes a apagar a
luz e sair, quando olhou mais uma vez para a sala, o lugar onde retornava todas
as tardes.
Tudo continuava como antes, mais uma vez não tinha
conseguido se desfazer dos papéis acumulados durante a sua vida.
Ela ainda pensou: O passado é a única eternidade
possível.
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