terça-feira, 15 de outubro de 2019

Tudo lá parecia impregnado de eternidade


Aquele tinha sido um dia quente, o céu ainda ardia com uma cor entre o rosa e o alaranjado, enquanto sol estava prestes à adormecer na linha do horizonte.
Ela estava de pé, em frente à grande janela de vidro, que ia do teto até o chão, quando se virou para dentro da sala, onde estavam centenas de fileiras de papéis amarelados, que exalavam o perfume do passado longínquo.
Tudo lá parecia impregnado de eternidade.


Ela respirou bem fundo, como se isso bastasse para transportá-la para dentro dela mesma, por onde sabia que a viagem teria que começar.
Guiada apenas por uma vontade sem razão, sentou- se num canto da sala, quase encostada a parede e começou a mexer na pilha de papel à sua frente.
Ela pegou nas mãos uma conta de luz, de 1992, ano em que entrou na Faculdade.
Lembrou- se do apartamento pequeno, que ficava no 3º andar do edifício “Mansão Butantã”,  no final da Avenida Corifeu de Azevedo Marques.
De repente se viu subindo os seis lances de escadas, fazendo gestos despropositados com as mãos para que a luz não se apagasse de repente, entre um andar e outro.    
Se ela pudesse se ver agora sentada naquele canto da sala, ficaria espantada com o seu rosto contraído de nojo por causa do aspecto gasto da forração do piso do antigo apartamento.
Até o cheiro de sabão em pó que ficava impregnado nos plásticos que revestiam as paredes e os pisos do banheiro e da cozinha, pareciam ter sido transportados para aquela sala.
Colocou a conta de luz ao seu lado, onde se somariam tantas outras.
Esticou a mão direita para pegar um envelope, abriu e dentro havia uma fotografia.
Eram oito jovens sorridentes sentados à mesa de um bar e ela estava entre eles.
Tentou de todas as formas resgatar qualquer migalha de lembrança daquele dia e nada.
Porque ela ria tanto, do que será eles estavam falando, quem eram as pessoas ao seu lado?
Quem tinha sido ela naquele bar?
Mexeu a cabeça de um lado para o outro, como se assim pudesse afastar aqueles pensamentos. Ela precisava continuar.
Então, colocou o envelope com a fotografia ao seu lado, onde se somariam outros tantos.
Levantou um pouco para esticar as pernas e andou até encontrar uma espécie de lençol, que em algum momento tinha sido branco, mas agora estava cheio de manchas de bolor.
Levantou o pano com as duas mãos até a altura dos seus olhos e, entre espantada e confusa, viu que tinha dois buracos nele, como se fossem dois olhos.
Ela, de repente se lembrou. Aquele pano velho um dia tinha sido uma fantasia de fantasma usada por seu filho, em algum lugar do passado.

- Ah! Meu Deus, é hoje a festa de halloween da escola? Eu esqueci e agora?
- Não se preocupa, Dani. Eu vou improvisar uma fantasia de fantasma, nós daremos um jeito.

Era quase como se estivesse ouvindo a voz daquela que, por tantas vezes, tinha salvado a sua pele. Era a Romilda.
Quanto tempo fazia que os caminhos das duas tinham deixado de se encontrar?
Com lágrimas nos olhos, colocou o pano precioso de memórias no mesmo lugar onde tinha retirado há apenas alguns minutos.
Em seguida, sentou- se na cadeira em frente à uma escrivaninha, o dois únicos móveis da sala.
À sua frente, ela viu uma pilha de listas telefônicas muito antigas e, entre elas, a ponta de um papel. Decidiu puxar devagar para não rasgá-lo.
Era uma lista de compras de supermercado:

- Dona Dane tá faltando Omo, amaciante, água sanitária, veja, frutas, legumes, miojo, molho de tomate, milho de pipoca, café de máquina...

Não leu até o fim. Bastava ter lido apenas Dona Dane e já seria suficiente para lembrar do tempo em que ia toda semana ao supermercado e voltava com o carrinho cheio.
A prova de que aquela casa já tinha sido mais cheia de gente do que de papéis velhos estava bem à sua frente.  
Voltou a guardar o papel no mesmo lugar.
Ela caminhou até a porta e já estava prestes a apagar a luz e sair, quando olhou mais uma vez para a sala, o lugar onde retornava todas as tardes.
Tudo continuava como antes, mais uma vez não tinha conseguido se desfazer dos papéis acumulados durante a sua vida.
Ela ainda pensou: O passado é a única eternidade possível. 

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